Artigo do prof. Dr. Marcelo Massarani, publicado pela Gazeta Mercantil Digital em 11/11/2025

Como engenheiros bem formados aplicam as ciências de engenharia para compreender a lógica dos mercados financeiros

No último fim de semana participei de um evento sobre Bitcoin e a nova economia descentralizada, tema que cada vez mais me fascina pelo uso intensivo de tecnologia e pela ousadia de redefinir a própria noção de valor.

Entre os palestrantes, reconheci um ex-aluno da Poli-USP que havia orientado há cerca de vinte anos em seu trabalho de conclusão de curso. Hoje ele é especialista em derivativos e conselheiro de uma empresa brasileira com características de “Bitcoin Treasury Company”, dedicada à gestão de reservas corporativas em Bitcoin.

No intervalo, conversamos brevemente. Em meio à explicação sobre derivativos, ele comentou com um sorriso: “É uma questão de energia e entropia, pura termodinâmica!”. A frase, dita com naturalidade, revelava mais do que uma metáfora. Mostrava como os fundamentos das ciências de engenharia permanecem vivos na forma de pensar, mesmo quando aplicados a sistemas aparentemente distantes do universo físico.

Essa breve conversa me levou a refletir sobre a presença, já consolidada e ainda crescente, de engenheiros em áreas financeiras. Engenheiros bem formados têm uma habilidade singular para compreender e representar fenômenos complexos. Quando encontram no mercado financeiro um novo campo de aplicação, levam consigo a capacidade de modelar sistemas, criar representações lógicas e identificar relações de causa e efeito. O que antes descrevia o funcionamento de uma turbina ou de uma suspensão veicular passa a descrever o comportamento de preços, fluxos e riscos.

Modelar, em engenharia, significa compreender um sistema por meio de suas variáveis essenciais. É construir uma representação simplificada, mas precisa, capaz de prever reações e comportamentos. Essa prática exige raciocínio lógico, domínio matemático e disciplina experimental. São exatamente essas competências que tornam o engenheiro apto a atuar em ambientes de alta complexidade, como o mercado financeiro, onde cada decisão depende da análise de múltiplos fatores em constante interação.

A engenharia, quando ensinada com ênfase em suas ciências fundamentais, forma profissionais capazes de atuar em qualquer sistema, seja ele físico, econômico ou social. Cursos que preservam a densidade teórica e estimulam o pensamento crítico preparam engenheiros para compreender sistemas complexos, lidar com incertezas e propor soluções consistentes.

A presença de engenheiros no mercado financeiro, portanto, não representa uma fuga da engenharia, mas a comprovação de que os princípios ensinados nas ciências de engenharia têm alcance muito mais amplo. Conceitos desenvolvidos em disciplinas tradicionais como termodinâmica, dinâmica, mecânica dos fluidos, mecânica dos sólidos, controle e modelagem de sistemas ensinam a descrever comportamentos complexos e a raciocinar sobre a interação entre variáveis. Essa mesma lógica de análise pode ser aplicada a outros domínios, permitindo ao engenheiro interpretar fenômenos econômicos e financeiros com a mesma clareza com que analisa sistemas físicos, reconhecendo padrões, identificando desequilíbrios e compreendendo a dinâmica dos fluxos.

Em última instância, o sucesso desses profissionais fora do ambiente tradicional da engenharia reforça a importância de uma educação que valorize o essencial: a capacidade de pensar de forma estruturada, compreender sistemas, modelá-los e transformá-los em conhecimento útil.

Nas escolas de engenharia, porém, é comum ouvir críticas de que muitos profissionais “se desviam” de sua função ao optar por carreiras financeiras. O argumento costuma vir acompanhado de certa frustração, já que esse movimento representa, de fato, uma perda para a indústria. No entanto, essa migração tem explicações concretas. O mercado financeiro reconhece o valor da formação analítica e oferece condições de trabalho e remuneração mais compatíveis com o nível de exigência técnica da função.

A desvalorização da profissão de engenheiro pelo próprio setor industrial tornou-se um paradoxo recorrente. Muitas empresas que reclamam da escassez de engenheiros contratam esses profissionais para funções administrativas ou cargos de “analistas”, restringindo o uso de suas competências técnicas. Ao fazer isso, desconsideram o verdadeiro papel da engenharia como atividade de integração, inovação e solução de problemas complexos, afastando talentos justamente das áreas que mais necessitam deles.

O tema das motivações que levam tantos engenheiros a ingressar no mercado financeiro ficará para um próximo artigo. Por ora, fica o registro de que, talvez, a engenharia nunca tenha deixado o laboratório e apenas tenha encontrado novos sistemas para decifrar.

Marcelo Massarani é Professor Doutor da Escola Politécnica da USP, Diretor Acadêmico da Associação Brasileira de Engenharia Automotiva, membro do Conselho Diretor do Instituto da Qualidade Automotiva e Conselheiro empresarial