Com o mercado brasileiro em expansão e o Brasil liderando o ranking mundial de produção de veículos civis blindados – à frente de Estados Unidos, México e Colômbia – o pesquisador e especialista automotivo Guido Muzio Candido elaborou, em sua tese de doutorado na Poli-USP, um raio-X do segmento de blindagem. Trata-se de uma produção inédita, com potencial para se tornar referência para políticas públicas, futuras normas técnicas e novos negócios.
A blindagem de automóveis é ainda um universo pouco compreendido, tanto pelo cliente – que muitas vezes contrata o serviço sem entender plenamente o que está adquirindo – quanto pelas blindadoras (oficinas especializadas), que adotam procedimentos diversos e, por vezes, têm conhecimento limitado sobre projetos automotivos e balística. Isso ocorre porque, até hoje, não existem no Brasil normas técnicas específicas e obrigatórias para regular a atividade.
Ciente desse cenário, o pesquisador, especialista automotivo, professor e colaborador do Centro de Engenharia Automotiva da Poli-USP, prof. Dr. Guido Muzio Candido, desenvolveu, em sua tese de doutorado pela Escola Politécnica da USP, a metodologia DfA2, Design para Montagem e Blindagem. O trabalho propõe uma revisão profunda e inédita do processo de blindagem de veículos civis: do projeto detalhado à produção, passando pela rastreabilidade dos materiais de proteção e pelos testes automotivos e, quando necessário, testes virtuais balísticos, até chegar à entrega ao consumidor. A metodologia busca preservar as funcionalidades originais dos veículos — inclusive mantendo a garantia de fábrica. “Apesar do mercado em expansão, ainda não existem no Brasil normas, diretrizes ou padrões automotivos específicos para projetos e montagem de blindagem civil”, afirma o pesquisador.

Que mercado é esse?
“O mercado de veículos blindados civis (CAVs) é altamente lucrativo, especialmente em países com altos índices de violência, como é o caso do Brasil, cuja taxa de homicídios é três vezes maior que a dos Estados Unidos (segundo o IBGE*)”, contextualiza o professor.
Segundo ele, o estado de São Paulo concentrou 84,18% dos veículos blindados produzidos em 2024 (de um total nacional de 34.402 unidades), conforme dados do Sistema de Controle de Veículos Blindados e Blindagens Balísticas – Sicovab, mantido e controlado pelo Exército Brasileiro.
A maioria desses veículos são automóveis convencionais que passam por oficinas especializadas – conhecidas como blindadoras – para receber blindagem após a fabricação. Ou seja, normalmente o veículo sai da fábrica, é parcialmente desmontado, adaptado para receber os materiais de proteção balística e, por fim, remontado por essas empresas.
Entendendo o veículo blindado
O propósito de um veículo civil blindado é proteger seus ocupantes contra armas de fogo de até calibres .44 Magnum, mantendo a aparência externa praticamente idêntica à de um carro comum. Para isso, os veículos recebem aço inoxidável, vidros à prova de balas e placas de aramida ou compósitos, capazes de resistir a disparos dessas munições, conforme o nível de proteção contratado.
A blindagem exige ajustes técnicos em diversos sistemas do veículo, de modo a integrar os materiais balísticos sem comprometer a funcionalidade. “É fundamental que as oficinas conheçam detalhadamente o projeto original do veículo para realizar uma blindagem segura e eficiente”, reforça o professor. “O processo também inclui reforços em portas, suspensão, janelas, sistemas eletrônicos, colunas, teto, rodas e outros componentes — o que pode adicionar entre 200 e 1.000 kg ao peso original.”
“O custo para blindar um veículo varia entre R$ 80 mil a R$ 150 mil, podendo incluir proteção básica, itens adicionais como pneus run-flat, reforço em baterias e tanques de combustível, sistemas eletrônicos, sirenes e comunicadores”
Os prejuízos da falta de normalização
Em 1999, foi criada a norma ISO/TS 16949 com o objetivo de unificar os padrões de qualidade da cadeia automotiva mundial — englobando montadoras, fornecedores e fabricantes de peças e componentes. A iniciativa, liderada pela International Automotive Task Force (IATF) em parceria com a ISO, ajudou a evitar múltiplas certificações e harmonizar processos. No entanto, no segmento de blindagem civil, essa padronização nunca ocorreu.
“Não existem normas padronizadas de qualidade ou processos para a blindagem no Brasil”, destaca o prof. Guido Muzio. “Cada empresa segue seus próprios critérios, sem certificações como a ISO/TS 16949 para orientar. Sem os devidos critérios automotivos e balísticos, e sem as orientações padronizadas, corre-se o risco de comprometer todo o processo: desde os componentes de segurança do automóvel, como os mecanismos das portas, airbags e cintos de segurança, até afetar negativamente a qualidade final como um todo – o que pode resultar na anulação das garantias de fábrica. A ausência de regulamentação, controle de qualidade e maior integração técnica com montadoras e concessionárias é um gargalo crítico do setor.”
Análise feita, hora de mostrar resultados com o DfA2
A metodologia DfA2, Design para Montagem e Blindagem, como metodologia para o processo de fabricação de veículos civis blindados propõe uma abordagem sistemática, baseada em fundamentos do design automotivo e requisitos balísticos, com foco em segurança, funcionalidade e durabilidade dos veículos.
“A aplicação da metodologia permite evitar falhas em componentes automotivos que interfiram com as peças de proteção balística, além de identificar vulnerabilidades nas áreas protegidas do compartimento de passageiros”
O estudo contou com o apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq para a elaboração desse projeto e incluiu:
- Pesquisa de campo com 8 empresas brasileiras de blindagem de destaque no mercado;
- Integração entre conhecimentos e critérios de engenharia automotiva, diretrizes de manufatura e processos, referências de segurança balística e qualidade;
- Identificação de lacunas críticas como a ausência de padrões técnicos aplicados à modificação e ajustes nos componentes dos veículos.
A metodologia DfA2 foi aplicada na prática a diversos subsistemas de um veículo real — estrutura, painéis, eletrônica etc. — com testes balísticos virtuais para validar a proteção do veículo.
“O proposta da DfA2 é garantir o funcionamento pleno dos sistemas originais do veículo — desenvolvidos, testados e aprovados pelas montadoras — ao mesmo tempo que assegura a resistência balística do compartimento de passageiros. Além do uso em veículos civis, a metodologia pode ser aplicada em veículos de serviço público, como viaturas policiais e governamentais.”

Embora existam muitas publicações técnicas focadas sobretudo em especificações de materiais balísticos voltados ao uso militar, a literatura científica sobre blindagem civil é escassa. Segundo levantamento do autor, realizado em novembro de 2024, são raros os estudos aprofundados no tema com base em referências técnicas estruturadas.
Atualmente, o Exército brasileiro (EB) exige que as empresas tenham Certificado de Registro (CR) para aquisição e uso de materiais balísticos, além do ReTex (Relatório Técnico do Exército), que certifica os componentes de proteção balística utilizados na blindagem restritos em uma dimensão padrão a serem instalados nos veículos (com validade de cinco anos). No entanto, não há exigência de certificação tanto em veículos civis blindados, quanto aos processos de blindagem ou testes balísticos completos do veículo — nem pelo Exército Brasileiro, nem por outro órgão oficial.
O estudo conclui que investir em qualidade é, a longo prazo, mais econômico do que lidar com os custos da má qualidade (retrabalho, perdas, reinspeções e custos de garantia dos serviços ao cliente, além de possível riscos à vulnerabilidade da proteção aplicada). E que, ao investir em conhecimento e desenvolvimento de processos, é possível entregar ao cliente um sistema de proteção veicular mais seguro e confiável com menor intervenção possível nas operações de blindagem.
A tese de Doutorado foi orientada pelo Prof. Dr. Paulo Carlos Kaminski, também do Centro de Engenharia Automotiva da Escola Politécnica da USP. Inovador, o trabalho de pesquisa propõe a padronização dos processos de blindagem no Brasil ao integrar critérios automotivos, de qualidade, referências em segurança balística e rastreabilidade. Uma produção inédita, com potencial para tornar-se referência em políticas públicas, direcionar futuras revisões de normas técnicas, além de dar início à inovação e a novos negócios no setor automotivo de blindagem civil.

Processo de produção de para brisa laminado no equipamento de autoclave Fonte Greiche 2022
Sobre o Prof. Dr. Guido Muzio Candido
Doutor em Engenharia Mecânica pela Escola Politécnica da USP. Atuação destacada em indústrias automotivas (BMW, CAOA, Ford, GM e Stellantis) com ênfase em engenharia de desenvolvimento de novos produtos automotivos, reduções de custos dos produtos, engenharia avançada, gestão de patentes na engenharia de produtos, gestão e auditoria de qualidade de processo e de fornecedores. Na área de blindagem, atuou em projetos de qualificação e validação de materiais e veículos civis blindados da BMW no Brasil com certificação balística pelo Instituto Beschussamt Ulm, órgão oficial do governo alemão. É professor orientador no MBA em Gestão e Engenharia de Produtos e Serviços no PECE/Poli-USP. Temas de interesse: processo de desenvolvimento do produto automotivo, qualidade do produto e processo automotivo, segurança e blindagem veicular.
Produção Acadêmica – GUIDO MUZIO CANDIDO – Título original (clicar no link para ter acesso ao trabalho completo) DfA2, Design for Assembly and Armoring, as the methodology for the manufacturing process of civil armored vehicles
Tese de Doutorado aprovada em 15/Nov/2024
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Artigo publicado na revista Production Engineering Archives (clicar no link para ter acesso ao trabalho completo) Optimizing civilian armored vehicle design with quality: A case study on lightweight ballistic protection using the DfA2 methodology
Referências utilizadas
* Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, citado pelo IBGESicovab: Sistema de Controle de Veículos Automotores Blindados – http://sicovab.eb.mil.br
Abrablin: Associação Brasileira de Blindagem – https://abrablin.net/