Para onde foram os engenheiros do setor automotivo?

Reportagem publicada pela Automotive Business discute a observada escassez de engenheiros na indústria automotiva. Entre os especialistas ouvidos, destaque para Marcelo Massarani, do Centro de Engenharia Automotiva da POLI-USP que analisa os impactos dessa tendência — impulsionada pela alta competitividade por esse perfil profissional em outros setores, especialmente onde a capacidade de analisar cenários diante de incertezas, assim como de projetar soluções inovadoras, é essencial.

Reportagem de Bruno de Oliveira – 23 julho 2025

Victor Lopes frequentou as cadeiras do Senai, o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, quando era mais novo, na época do colegial. Se tornou mecânico de usinagem. Depois, mecânico de manutenção. Mais tarde, formou-se desenhista projetista no Centro Paula Souza. Logo viria a graduação em engenharia de produção mecânica. Queria trabalhar com automóveis.

No entanto, o que seria uma carta marcada no passado de um Brasil se industrializando na esteira das primeiras montadoras e sistemistas que desembarcavam no país, e no contexto de um país mais diverso em termos econômicos, acabou se tornando uma opção de trabalho a mais – e nem tão atrativa assim.

O personagem, assim como muitos outros engenheiros que se formaram nos últimos anos, deixou de lado o desejo de ser um profissional automotivo para dar expediente em outras áreas. O movimento desses estudantes esvaziou as salas das universidades e essas figuras se torna rammenos presentes nos quadros das empresas do setor.

Não apenas pesquisas feitas pelo governo mostram esse declínio, como crescem os relatos dentro da indústria a respeito da falta ou escassez desses profissionais. Justamente no momento em que a indústria automotiva ensaia um novo salto tecnológico, parece ecoar um grito desesperado pelas linhas e departamentos: “Onde foram parar os engenheiros?”

A profissão perdeu o brilho?

O mundo acadêmico desconfia de algumas hipóteses que podem ajudar a responder a essa questão. Elas estariam todas interconectadas de alguma forma e culminam nesse quadro de falta de engenheiros no mercado.

Uma delas é a de que a profissão simplesmente perdeu o glamour. A suspeita é a de que o trabalho na indústria deixou de ser algo almejado, assim como o próprio veículo deixou de ser essencial em termos de “posse”, por exemplo.

“Engenharia é complicado, é um curso que demanda muito esforço e os jovens estão buscando áreas que lhes parecem mais dinâmicas, atrativas. Isso não é apenas um reflexo de como a indústria e o mercado estão hoje, mas também é um problema das instituições de ensino”, afirma o professor Clayton Zabeu, do Instituto Mauá de Tecnologia.

O problema, no caso, seria a falta de meios para se reter um aluno no curso. Ou a ausência de ferramentas eficazes para se “vender” o curso de engenharia na base do ensino, ou seja, nos ensinos médio e fundamental.

“O aluno passa a vida achando a engenharia algo chato, quando na verdade é uma área que é dinâmica por estar na vanguarda do desenvolvimento tecnológico”, conta o professor.

Dados mais recentes da pesquisa Censo da Educação Superior, realizada anualmente pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão ligado ao Ministério da Educação (MEC), mostram que nos últimos anos há uma diferença grande entre o número de alunos que iniciam o curso de engenharia e o volume dos que conseguem terminar.

Em 2023, segundo a pesquisa, o número de matriculados nos cursos de engenharia no país chegou a 892,7 mil alunos. Desse total, 358,4 mil ingressaram de fato (40% dos matriculados). Menos da metade concluiu a graduação, 119 mil alunos (33% dos ingressantes). O Inep considerou dados de universidades privadas e públicas na pesquisa.

Em 2022, por outro lado, o quadro era diferente. O número de matriculados era maior, de 903 mil alunos, dos quais 344 mil (38% dos matriculados) ingressaram nos cursos de engenharia. O volume de formados, por sua vez, foi de 124 mil alunos naquele momento (36% dos ingressantes).

Já em 2019, antes da pandemia de Covid-19, o número de matriculados em cursos de engenharia no país foi de 1,017 milhão de alunos. Desses, 312 mil ingressaram no curso (29% dos matriculados), e 159 mil concluíram a graduação (51% dos ingressantes). Nota-se nos três recortes que o número de matriculados caiu, e que tanto o número de ingressantes quanto o de concluintes ficou abaixo da metade.

Os novos caminhos dos engenheiros

A queda constante no número de graduados em cursos de engenharia no Brasil, observada ao longo dos últimos anos, é explicada por uma combinação de fatores. Entre os principais, está a evasão para outros cursos considerados mais atraentes, especialmente os ligados à área de tecnologia da informação (TI).

A promessa de ascensão profissional mais rápida, salários altos e ambientes de trabalho mais flexíveis atrai um número crescente de estudantes de engenharia para graduações como ciência da computação, sistemas de informação, engenharia de software, ou mesmo cursos técnicos rápidos com foco em programação.

Além disso, muitos engenheiros formados acabam deixando o campo industrial para atuar no mercado financeiro, onde suas habilidades analíticas, de modelagem matemática e raciocínio lógico são altamente valorizadas.

Foi o que aconteceu com Victor, o personagem desta matéria. Depois de iniciar a carreira em uma sistemista, a Visteon, migrou para o setor financeiro atraído pelas cifras.

“Engenheiros trabalham com análise de cenários, e isso é muito aderente ao trabalho das fintechs, por exemplo”, explica Marcelo Massarani, professor doutor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) e diretor acadêmico da Associação de Engenharia Automotiva (AEA).

“Mas existe um outro fator interessante. A incerteza tecnológica a respeito do futuro do setor automotivo também influencia na decisão do estudante. Não apenas a respeito do futuro do produto veicular, mas também sobre a sua manufatura”, observa o engenheiro.

“Tem também uma questão acadêmica. Às vezes, o ensino não consegue acompanhar a evolução da indústria, o que reflete na qualidade do ensino”, completa.

Segundo levantamento da Michael Page, de 2025, engenheiros que migram para áreas como consultoria, bancos de investimento ou fintechs podem começar suas carreiras com salários maiores do que os oferecidos em cargos técnicos da indústria automotiva.

A pesquisa mostra que enquanto um engenheiro recém-formado de produção ou de produto, por exemplo, pode ganhar entre R$ 7 mil e R$ 9,5 mil mensais, um profissional com formação no ensino superior no mercado financeiro ou em grandes empresas de tecnologia pode ter um salário que ultrapassa os R$ 12 mil mensais já nos primeiros anos de atuação como analista.

Esse descompasso salarial contribui para o esvaziamento dos quadros técnicos da indústria. Especialmente no setor automotivo, que historicamente foi o destino natural de engenheiros no Brasil.

A escassez também é global

A falta de engenheiros não é um fenômeno restrito ao Brasil, é um problema global. Um relatório da Unesco, divulgado em 2021, mostrou que o mundo precisará formar mais de 40 milhões de engenheiros, cientistas e técnicos até 2030 para atender às demandas da transição energética, urbanização, infraestrutura e digitalização.

Nos Estados Unidos, o US Bureau of Labor Statistics previu que até 2032 a demanda por engenheiros crescerá em média 6% ao ano, com algumas áreas como engenharia de software e elétrica superando os dois dígitos.

“A procura por engenharia também diminui quando cai também o nível de industrialização do país”, afirma Marco Barreto, professor do curso de engenharia mecânica da FEI.

“De qualquer modo, o déficit que existe também ocorre porque os engenheiros que estão no setor automotivo migram muitas vezes para outras filiais fora do Brasil. E essa fuga nem sempre é suprida rapidamente pelo contingente que sai das universidades.”

As projeções acima, no entanto, ainda contrastam com a falta de profissionais na porção mais desenvolvida do planeta. Na Alemanha, a associação local de engenheiros, a VDI, estimava um déficit de cerca de 140 mil engenheiros já em 2023, especialmente em setores como automação e mobilidade elétrica.

Já na Índia, embora o país forme mais de 1 milhão de engenheiros por ano, por volta de 20% são considerados empregáveis para funções de alto nível técnico, segundo o relatório da Aspiring Minds, de 2022.

Quando a saída é apostar em soluções caseiras

Quando a solução não vem de fora das empresas, o jeito é apostar na retenção de talentos. O que muitas companhias têm feito, segundo as fontes ouvidas pela reportagem, é investir em programas internos de capacitação para atender à demanda por profissionais escassos no mercado.

A Cummins, por exemplo, integra o programa Formare. É uma espécie de ação conjunta com outras companhias com operação no Brasil para promover ensino técnico a jovens de baixa renda. Ainda que o alvo não sejam os graduandos, o programa tem ligações com os quadros de funcionários no futuro.

“O Brasil ainda está na vanguarda da engenharia, as empresas ainda estão por aqui”, conta Soraia Franco, gerente executiva de responsabilidade corporativa da Cummins.

“Programas como o Formare apresentam isso aos jovens, é uma forma de estímulo para que eles busquem profissões nessa área técnica que tanto luta para reter talentos”, completa a executiva.

No caso da Bosch, a empresa conduz no país um programa de capacitação de jovens na área de software. Da mesma forma que o Formare, essa medida da sistemista também tem como objetivo formar em casa os profissionais que a empresa sabe que vai precisar no futuro – e que também contarão com uma oferta abaixo da demanda.

“Mais do que capacitar, queremos inserir esses profissionais do futuro na cultura de inovação. Precisamos lembrar que tudo aquilo que é novo no setor automotivo quase sempre surge numa prancheta dentro de uma empresa sistemista”, explica Gastón Díaz Pérez, CEO da Bosch.

OBS: A íntegra da matéria, que inclui tabela com os dados gerais dos cursos de engenharia no Brasil, encontra-se neste link: Automotive Business