O carro popular está virando artigo de luxo?

Artigo do prof. Dr. Marcelo Alves publicado na Gazeta Mercantil Digital em 18/11/2025.

A ideia de que o carro popular está desaparecendo não é apenas uma impressão de consumidores frustrados. Os números indicam que, em boa parte do mundo, os veículos de entrada estão mais caros em termos nominais, tecnologicamente mais complexos e, em certos mercados, menos acessíveis do que há dez anos. No Brasil, essa percepção é particularmente sentida. Mas será que os preços realmente subiram acima do razoável — ou o que mudou foi o contexto econômico e tecnológico que redefine o “carro básico”?

Para responder a essa questão, foram comparados preços e atributos dos modelos de entrada entre 2014 e 2024 em três regiões — Brasil, Europa e Estados Unidos — usando, quando apropriado, conversões em PPP para neutralizar flutuações cambiais. Essa abordagem não elimina todas as diferenças entre mercados, mas dá uma base comum para interpretação. Importante lembrar que a PPP ajusta o custo de vida relativo, mas não captura diferenças estruturais de tributação, crédito e renda disponível, fatores decisivos para a acessibilidade à compra de veículos em cada mercado.

Comparações internacionais e o peso da inflação

Nos Estados Unidos, o Nissan Versa básico custava aproximadamente US$ 11.990 em 2014 e cerca de US$ 16.130 em 2024; ajustado pela inflação americana acumulada, o preço real mostra relativa estabilidade. Na Europa, modelos como o Dacia Sandero exibem comportamento semelhante quando convertidos por PPP: aumentos nominais, mas estabilidade ou leve queda real em alguns casos.

No Brasil o quadro difere no impacto percebido pelo consumidor. Em 2014, modelos de entrada como o Gol 1.0 tinham preços de lançamento na faixa de R$ 28–30 mil; em 2024, o modelo mais acessível da nova geração (Kwid Zen, referência de mercado) foi reportado em torno de R$ 74–76 mil. Essas referências vêm de tabelas de lançamento e levantamentos de mercado. Analisando em dólares PPP, há estabilidade de preço real, mas localmente o efeito é distinto: câmbio, tributação e trajetória de rendimentos amplificam a sensação de encarecimento, tornando o carro de entrada menos acessível mesmo sem aumento real global.

Um novo patamar tecnológico

Comparar um modelo básico de 2024 com um de 2014 é comparar produtos de natureza diferente. Em dez anos as exigências de segurança, conectividade e controle de emissões foram incorporadas à lista mínima de equipamentos, elevando o nível técnico dos modelos de entrada.

Recursos como frenagem automática de emergência (AEB), controle eletrônico de estabilidade e múltiplos airbags, antes restritos a segmentos mais altos, tornaram-se frequentes nos carros de entrada. Normas como o Proconve (fases L e P) impõem requisitos de segurança e emissões que exigem adaptações tecnológicas e custos de engenharia. O resultado prático é um carro “básico” com atributos de segurança e eficiência que o aproximam de categorias superiores do passado — um avanço inegável, ainda que com custos embutidos.

Margens comprimidas e a reconfiguração do mix

Durante décadas o hatch foi o carro-símbolo da mobilidade de massa no Brasil; nas listas de emplacamentos de 2014 os modelos compactos dominavam o top-10. Nas duas últimas décadas, porém, o mercado reconfigurou-se: segundo dados da Fenabrave e levantamentos setoriais, a participação dos SUVs nos licenciamentos saltou de ≈10,8% (por volta de 2014) para algo em torno de 48% em 2024, tornando-os o segmento hegemônico do mercado de passeio. Em paralelo, os hatches — que antes compunham a coluna vertebral das vendas — passaram a responder por algo entre 27% e 30% das vendas em 2023–2024, segundo consolidações de mercado, perdendo assim a posição de liderança em favor dos utilitários esportivos. Essa mudança de mix reflete tanto a mudança de preferência do consumidor quanto a realocação de investimentos das montadoras para segmentos de maior margem, com impactos claros sobre a oferta e a competitividade dos modelos de entrada.

A alocação de investimentos em segmentos de maior valor agregado é uma resposta combinada a custos crescentes, regulação e preferências de mercado. O efeito líquido, porém, é menos competição entre modelos básicos e menor oferta acessível ao público de renda média e baixa.

A erosão do poder de compra no Brasil

A percepção de encarecimento tem base concreta quando se observa o esforço de renda necessário para comprar um carro de entrada. O IBGE registra rendimento domiciliar per capita médio de R$ 1.052 em 2014 e R$ 2.069 em 2024 (PNAD Contínua).

Tomando preços de referência — R$ 28–30 mil para um Gol 1.0 em 2014 e ≈ R$ 74,6 mil para o Kwid Zen em 2024 —, o esforço medido em renda per capita sobe de cerca de 2,3 anos (2014) para ~3,0 anos (2024), um aumento de 25–30%. Mesmo que os preços em dólares PPP permaneçam estáveis, o poder de compra doméstico diminuiu pela combinação de preços nominais mais altos, desvalorização cambial e renda que cresceu abaixo dos custos do setor. A média per capita, contudo, oculta desigualdades significativas: para famílias de menor renda o esforço é muito maior.

A esse quadro soma-se a piora nas condições de crédito, que limita ainda mais o acesso ao automóvel novo. Segundo dados do Banco Central e da ANEF, a taxa média de juros para financiamento de veículos passou de cerca de 18% ao ano em 2014 para superior a 28% ao ano em 2024, enquanto o prazo médio dos contratos encolheu de 42 para 36 meses. O aumento da inadimplência e as exigências de entrada mais altas — hoje frequentemente acima de 40% do valor do veículo — reduziram o número de aprovações de crédito, sobretudo entre as faixas de renda média e baixa. O resultado é um mercado menos inclusivo, no qual o carro novo se torna um bem cada vez mais distante para parte da população.

Pressão regulatória, baterias e a transição energética

A reorientação do setor para elétricos e híbridos adiciona outra camada de custos. Baterias continuam sendo um dos principais componentes do custo total, e embora os preços por kWh tenham caído de forma acentuada em 2023–2024, conforme relatórios da IEA e BNEF, a eletrificação ainda envolve gastos relevantes em P&D, adaptação de plataformas e infraestrutura. Esses custos, em parte, são diluídos em toda a carteira de produtos, afetando inclusive as linhas a combustão. No curto prazo, a transição gera uma “inflação estrutural” que desafia especialmente os modelos de entrada.

Zonas de emissões e o novo custo da conformidade ambiental

A tendência de encarecimento dos veículos de entrada não é exclusiva do Brasil. Em várias economias desenvolvidas, políticas ambientais mais restritivas também têm elevado o custo de manter ou adquirir automóveis de baixo valor. Um exemplo emblemático são as ULEZ (Ultra Low Emission Zones) implantadas em Londres e já replicadas em outras cidades europeias, que restringem a circulação de veículos mais antigos e com maiores emissões. Essas medidas têm como efeito colateral a desvalorização dos modelos populares e o aumento do custo de uso do automóvel individual, especialmente para famílias de menor renda. O resultado é que, mesmo em países de alta renda, o acesso ao carro particular começa a se concentrar em grupos com maior capacidade financeira, reforçando um padrão global de exclusão do automóvel entre grupos de menor renda, ainda que a necessidade de mobilidade individual permaneça

Mercado de usados e novas formas de acesso

A demanda por usados manteve-se robusta e registrou picos em 2024. Relatórios da Fenabrave e de consultorias como KBB indicam forte atividade no segmento de seminovos, o que sustenta preços e reduz o giro da frota. Essa valorização relativa do usado resulta de uma combinação de fatores — menor oferta de 0-km, juros elevados e restrição de crédito — e ajuda a explicar o envelhecimento do parque circulante.

Cresce também o interesse por formas alternativas de mobilidade, como assinatura, compartilhamento e aluguel. Essas opções reduzem o custo inicial e se ajustam melhor à renda disponível, especialmente entre consumidores jovens urbanos.

Idade da frota e política industrial

A frota brasileira segue envelhecendo: levantamentos do Sindipeças indicam idade média acima de 10 anos, chegando a cerca de 11 anos em 2023–2024. Esse envelhecimento afeta segurança, emissões e produtividade da cadeia de autopeças, além de reduzir o impacto de políticas de renovação tecnológica.

A experiência internacional mostra que países que mantiveram competitividade global — como Coreia do Sul e México — combinaram política industrial ativa, escala exportadora e integração tecnológica. O Brasil, em contraste, ainda opera com cadeias fragmentadas, alto peso tributário e limitada integração com plataformas globais. Uma agenda de modernização industrial precisa incluir incentivos à engenharia local, estímulos à produção de componentes críticos e políticas de crédito que favoreçam modelos de entrada mais eficientes.

Conclusão: o “popular” está em transição, não em extinção

Os dados mostram que, sob o ponto de vista internacional, o preço real de muitos carros de entrada permaneceu relativamente estável. Ainda assim, o esforço de renda para adquiri-los no Brasil aumentou, refletindo fatores estruturais mais amplos.

O carro popular não desaparece por completo — reconfigura-se. A convergência entre exigências regulatórias, transição energética e estratégias industriais está redefinindo o que é “básico”. O risco, se nada for feito, é que a mobilidade individual se torne cada vez mais restrita a faixas de renda altas, enquanto outros grupos migram para alternativas menos seguras ou mais informais.

Uma política pública equilibrada deveria perseguir três objetivos:

  1. Reduzir o custo tributário e logístico dos modelos de entrada produzidos localmente;
  2. Estimular a inovação tecnológica nacional para manter competitividade em segurança e eficiência;
  3. Ampliar o acesso ao crédito e à infraestrutura de transporte para democratizar novamente a mobilidade individual.

O desafio não é apenas econômico, mas também social e industrial. O “carro popular” foi, por décadas, um símbolo de mobilidade — e sua preservação, em novas bases tecnológicas, é uma questão de visão estratégica para o país.

Referências principais

  • IBGE — PNAD Contínua (rendimento domiciliar per-capita 2014–2024).
  • ANFAVEA — Carta da Indústria Automotiva e relatórios anuais 2014–2024.
  • Sindipeças — Relatório da Frota Circulante 2023–2024.
  • International Energy Agency (IEA) — Global EV Outlook 2024.
  • BloombergNEF — Battery Pack Prices Survey 2024.
  • ICCT — Impact of Emission Standards on Vehicle Costs.
  • Fenabrave e KBB — boletins sobre mercado de seminovos (2024).
  • FIPE e Motor1 — preços de referência Gol 1.0 (2014) e Kwid Zen (2024).

Prof. Dr. Marcelo A L Alves – Docente no Departamento de Engenharia Mecânica – Escola Politécnica da USP – Coordenador do Centro de Engenharia Automotiva