* Ronaldo de Breyne Salvagni Especial para o UOL
O governo brasileiro quer promover inovação e competitividade no país através do novo regime automotivo, o Inovar-Auto. Depois de aumentar o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) para 30% e restringir a importação de veículos, foi publicado no Diário Oficial, em outubro passado, o decreto que instituiu esse regime. Em resumo, as marcas com fábricas aqui poderão se beneficiar de redução daquele IPI, desde que invistam em pesquisa, desenvolvimento, engenharia nacional e produzam carros mais econômicos e menos poluentes. As importadoras poderão ampliar suas cotas se se enquadrarem nessa última exigência.
O decreto diz que o Inovar-Auto “tem como objetivo apoiar o desenvolvimento tecnológico, a inovação, a segurança, a proteção do meio ambiente, a eficiência energética e a qualidade dos veículos e autopeças”.
A ideia geral tem vários pontos positivos, mas um problema começa aqui, pois esses objetivos são muito genéricos, parecem mais uma “declaração de boas intenções” do que uma ação que pretenda ter resultados tangíveis. Por exemplo, o que se pode esperar como resultado de “apoiar … a qualidade dos veículos e autopeças”? O que significa isso? Além disso, o decreto não faz menção de alguma estratégia de desenvolvimento do país associada a esse regime, com metas econômicas e geopolíticas de maior alcance e abrangência.
FALTA DE OBJETIVO
Dá a impressão de que o Inovar-Auto é uma iniciativa isolada na política do governo, fechada em si mesma. Nas declarações públicas do governo, afirmou-se que o objetivo maior desse regime seria promover a inovação e a competitividade do Brasil no setor automotivo. Este é o discurso. Porém, inovação e competitividade são apenas qualidades, não são objetivos em si, são apenas “ingredientes” para se atingir algum objetivo maior, que ninguém sabe bem qual é.
Por exemplo, a inovação. Inovação para quê? Novidade pela novidade? Todas as fabricantes já fazem muita inovação, mas fazem isso nos seus países de origem. O governo quer que elas façam isso aqui? Por quê, o que ganhamos com isso? Aparentemente o governo quer promover o desenvolvimento de capacitação técnica e tecnologia brasileiras, com patentes e royalties, e a existência aqui de centros de Pesquisa e Desenvolvimentos, fazendo o país desempenhar um papel importante no cenário da engenharia automotiva mundial.
Este é um dos objetivos da China, e ela está executando seu plano estratégico nessa direção. Mas, no Brasil, estamos fazendo mais uma “jabuticaba” — aquelas coisas que só existem aqui, não existem em mais nenhum lugar do mundo. Para começar, todas as fabricantes de automóveis no Brasil são estrangeiras, e assim fica difícil falar em “tecnologia nacional”, mesmo sendo desenvolvida por brasileiros. As patentes e os royalties continuariam sendo das multinacionais. Se tivéssemos pelo menos uma marca brasileira, de nível mundial, aí sim poderíamos falar em tecnologia nacional, como acontece em alguns outros setores — vide a Embraer, a Petrobrás, a Vale e algumas poucas mais.
Ainda na inovação, falamos nas fabricantes, mas é importante perceber que o real avanço tecnológico e capacitação técnica não estão nelas, e sim nos seus fornecedores — os sistemistas e fabricantes de autopeças. É aqui que o novo regime automotivo fica mais misterioso, pois não oferece nenhum incentivo direto a estas empresas, apesar da inovação e tecnologia estarem centradas nelas. Entretanto, esses fabricantes de autopeças são também na grande maioria multinacionais (pelo menos as grandes), o que continuaria prejudicando o conceito de “tecnologia brasileira”.
INOVAR É CARO E ARRISCADO
De qualquer forma, o fato fundamental é que a inovação não é um fim em si, ela é apenas um fator estratégico da competitividade das empresas. Inovação exige pesquisa e desenvolvimento, o que é caro e arriscado — ninguém faz inovação porque quer ou porque gosta, mas porque precisa dela para ter competitividade no cenário global. Se tivéssemos uma fabricante de carros brasileira, ou fabricantes de autopeças/sistemistas brasileiros, forçados a competir no mercado mundial (e não apenas atuando no mercado local, protegidos), a inovação brasileira ocorreria naturalmente, sem precisar de incentivos nem de “regimes”.
É o que acontece com a Embraer, a Petrobrás e outras, já citadas. E, não por acaso, é também a estratégia industrial que o Japão e a Coreia do Sul adotaram para o seu desenvolvimento, e é a mesma que a China está adotando agora.
O outro objetivo declarado pelo governo é o de “aumentar a competitividade da indústria nacional”, aparentemente se referindo aos produtos fabricados no Brasil face aos fabricados no exterior. Aqui novamente não fica claro se o cenário focado é o mercado local brasileiro, ou se está se falando de exportações para o mercado global.
CUSTO BRASIL É OBSTÁCULO
Para proteger a fabricação nacional no mercado local, a solução simplista para garantir a competitividade dos “nossos produtos”, desde sempre adotada por sucessivos governos brasileiros, é a taxação do produto importado. Isto, entretanto, tem sido complicado pela atuação da OMC (Organização Mundial do Comércio) contra o protecionismo comercial, que pode prejudicar a situação do Brasil nas suas relações comerciais com o mundo todo. Assim, a mera taxação dos importados tem sido limitada (às vezes, disfarçada), não chegando a resolver o problema da competitividade do produto nacional.
Já foi amplamente divulgado o fato de que o preço dos automóveis vendidos no Brasil chega a ser de duas a três vezes o preço praticado em outros países. Assim sendo, sem taxação, não há como competir com os importados. Este fato não é nem mencionado, muito menos contemplado, no Inovar-Auto.
Segundo várias fontes, o custo de produção no Brasil é um dos mais baixos do mundo (ponto a favor da competitividade), mas os impostos (mais de 36%, segundo dados da Anfavea, a associação das fabricantes de veículos), o “custo Brasil” de infraestrutura precária e burocracia, e a margem de lucro das empresas (mais de 10% aqui, quando no mundo não passa de 5%), jogam os preços lá para cima. O que viabiliza o mercado de carros no Brasil, a esses preços altíssimos, é o crédito (dezenas de prestações, sem entrada), que é outra “jabuticaba” nossa, não existe nos países desenvolvidos.
E é um mercado aquecido, promissor e lucrativo, não é à toa que o Brasil tem mais fabricantes (mais de 20) do que qualquer outro país do mundo, e mais outras estão chegando aqui para explorar esse mercado.
Em termos da participação brasileira no cenário global, e da relação entre os mercados local e global, é interessante observar alguns números da tabela a seguir, referentes aos anos de 2008 a 2011 e relativos a todo o setor, incluindo veículos e peças. Pode-se notar o efeito da crise de 2008, mas o que claramente chama a atenção é a evolução do saldo da balança comercial, que é reflexo direto da (perda de) competitividade global do produto nacional.
Faturamento e balança comercial do setor automotivo
Ano | Faturamento líquido |
Exportação | Importação | Saldo da balança comercial (em US$ milhões) |
2008 | 94.068 | 24.013,6 | 21.588,8 | 2.424,8 |
2009 | 93.179 | 13.753,5 | 17.523,6 | – 3.770,1 |
2010 | 105.455 | 20.782,3 | 26.653,7 | – 5.871,4 |
2011 | 105.375 | 24.282,3 | 33.586,3 | – 9.304,0 |
- Fonte: Anuário da Indústria Automobilística Brasileira (2012)
A perda maior tem sido do setor de autopeças. O Sindipeças (que representa as empresas do setor) informa que o faturamento no acumulado de janeiro a setembro de 2012 caiu 15,4% sobre o de igual período de 2011, descontada a inflação. Há risco real de se perder boa parte desse setor com fechamento de empresas nacionais de médio e pequeno porte.
O programa Inovar-Auto tem pontos positivos, sem dúvida, mas não esclarece quais são seus objetivos estratégicos para o país, nem como pretende atingi-los. Ele dá a impressão de apenas adotar algumas medidas cosméticas sem tocar nos problemas principais.
Se o Brasil pretende fazer seu Setor Automotivo ocupar um espaço importante no cenário mundial, e deixarmos de ser apenas um mercado grande e atraente para ser explorado por empresas de outros países, dois conjuntos de ações parecem ser indispensáveis:
- Reduzir a excessiva carga fiscal e o “custo Brasil”;
- Incentivar e apoiar empresas brasileiras (não estatais) para competir (e vencer) no cenário global — de nada adianta ficarem protegidas no mercado local.
Se não for assim, é melhor nos conformamos em ficarmos por aqui comprando carros caríssimos, em suaves prestações, cheios de novidades e enfeites, fabricados aqui, mas concebidos com a tecnologia e capacitação técnica de outros países.
* Ronaldo de Breyne Salvagni, engenheiro naval, é professor titular e coordenador do Centro de Engenharia Automotiva da Escola Politécnica da USP
Este artigo foi publicado no Portal UOL, no dia 26 de dezembro de 2012