Artigo extraído da coluna do Prof. Dr. Marcelo Massarani, publicado na Gazeta Mercantil Digital em 02/12/2025
Autonomia, riscos e o preparo necessário para uma nova forma de guardar valor
No último final de semana participei de um evento dedicado a blockchain e ativos digitais. Entre discussões técnicas e demonstrações de aplicações inovadoras, algo aparentemente simples capturou minha atenção. Era um protótipo educacional de um equipamento que permite que qualquer pessoa compre satoshis, que são pequenas frações de Bitcoin, apenas inserindo uma nota de dinheiro físico e recebendo o valor correspondente em sua carteira digital. Essa transferência acontecia por meio da Lightning Network, que é um protocolo de pagamentos instantâneos construído sob a rede Bitcoin. A cena parecia trivial, mas carregava uma mensagem profunda.
O pequeno terminal de madeira, a tela sensível ao toque e o símbolo laranja brilhante do Bitcoin apresentavam algo que vai além de tecnologia. Eles representavam um novo tipo de relação entre o cidadão e a forma como ele pode preservar seu patrimônio. Ao observar o equipamento percebi que ele não só demonstrava uma inovação pedagógica como revelava uma pergunta essencial sobre o futuro. Estamos preparados para lidar com a liberdade financeira radical proporcionada pelo Bitcoin?
Durante toda a nossa vida convivemos com formatos de poupança e investimento que dependem de intermediários. Contas bancárias, aplicações financeiras, títulos e diversos outros instrumentos exigem a presença de instituições que guardam, movimentam e controlam o acesso ao nosso patrimônio. Essa estrutura foi construída para dar segurança ao sistema e permitir que políticas públicas funcionem. No entanto, ela também centraliza o poder. Bancos podem bloquear valores, governos podem impor restrições e crises podem corroer a poupança de milhões de pessoas.
O Bitcoin introduz um conceito diferente. Ele permite que o indivíduo mantenha uma reserva de valor sob seu próprio controle, sem depender de qualquer instituição para proteger ou movimentar parte relevante de sua riqueza. Uma carteira digital funciona como um aplicativo ou dispositivo onde o usuário mantém suas chaves privadas, que são códigos que garantem acesso exclusivo aos seus Bitcoins. Quem controla as chaves controla essa forma alternativa de preservar patrimônio. A Lightning Network, usada no protótipo que observei, facilita movimentações rápidas de pequenas frações de Bitcoin, mas segue o mesmo princípio de autonomia. Não há gerente de banco, não há pedido de autorização, não há repartição pública supervisionando a operação. O cidadão não está criando um novo meio de pagamento cotidiano, e sim acessando um instrumento adicional de proteção patrimonial.
A autocustódia, que consiste em guardar e proteger as próprias chaves privadas, é ao mesmo tempo libertadora e arriscada. Em contraste com o sistema atual, em que erros podem ser corrigidos, transações podem ser revertidas e senhas podem ser recuperadas, no universo do Bitcoin não existe botão de desfazer. Se alguém perde suas chaves ou as compartilha por engano, os Bitcoins desaparecem para sempre. Essa característica não é um defeito da tecnologia, é parte essencial do seu desenho.
A pergunta então se torna inevitável. A sociedade está preparada para assumir essa responsabilidade? O cidadão comum, que muitas vezes esquece a senha do aplicativo do banco, tem condições de gerir um código que representa parte importante de sua reserva de valor? Para muitos, isso significa um enorme salto de maturidade. A liberdade financeira radical oferecida pelo Bitcoin exige uma educação igualmente radical, capaz de preparar indivíduos para um ambiente em que a proteção do patrimônio depende de cuidado pessoal e não da intervenção de terceiros.
Se o Bitcoin for adotado em larga escala como reserva de valor, governos terão menos margem para usar a inflação como ferramenta de ajuste fiscal. Quando a população tem acesso a um ativo global que preserva poder de compra de forma independente de políticas nacionais, decisões fiscais e monetárias irresponsáveis se tornam mais rapidamente penalizadas. Essa dinâmica já existe em países onde a população recorre ao dólar para se proteger da desvalorização da moeda local. O Bitcoin leva essa lógica a um nível mais profundo, pois pertence ao indivíduo e não a outro país.
Para que essa mudança aconteça sem gerar danos sociais, é preciso preparar o cidadão comum. O primeiro passo é a educação financeira básica, que ainda é insuficiente no Brasil. A compreensão de conceitos simples como orçamento, juros e inflação já é um desafio para milhões de pessoas. A introdução de Bitcoin torna necessário também o entendimento de conceitos tecnológicos. As pessoas precisam aprender a reconhecer golpes digitais, a criar cópias de segurança seguras, a utilizar carteiras digitais confiáveis e a diferenciar custódia própria de custódia terceirizada.
Essa educação não deve ser elitista ou restrita a grupos especializados. Assim como aprender a dirigir exige aulas práticas e teóricas, aprender a usar Bitcoin como reserva de valor de forma segura exige etapas progressivas. Em um primeiro momento o usuário pode começar com valores pequenos e com uma carteira simples instalada no celular. Depois pode aprender a fazer cópias de segurança, a identificar riscos comuns e a transacionar pequenas quantias. Só então pode avançar para formas de autocustódia mais robustas. Esse processo reduz o risco de erros irreversíveis e forma uma base sólida para a adoção consciente.
Nada disso acontece sem esforço coletivo. Universidades, escolas técnicas, associações de classe, empresas de tecnologia e órgãos reguladores podem contribuir para construir essa alfabetização digital e financeira. O Bitcoin não deve ser tratado como uma curiosidade periférica. Ele deve ser entendido como um fenômeno cultural que exige novas competências, da mesma forma que a internet exigiu habilidades que antes eram raras e hoje são triviais para qualquer estudante.
Ao observar novamente o protótipo exposto no evento percebi o que ele realmente representa. Ele não apenas permite que alguém compre satoshis com uma nota de papel. Ele convida o cidadão comum a entrar em um universo onde a responsabilidade financeira, a consciência tecnológica e a autonomia individual são inseparáveis.
O Bitcoin não testa apenas governos ou sistemas bancários. Ele testa o indivíduo. Testa sua capacidade de tomar decisões responsáveis e de lidar com a liberdade de forma madura. A grande questão não é se a tecnologia está pronta para a sociedade. A questão é se a sociedade está pronta para a tecnologia.
Quando esse nível de maturidade for alcançado, o Bitcoin deixará de ser percebido como uma experiência marginal e passará a ser compreendido como parte estrutural da economia moderna. E talvez seja esse o verdadeiro significado daquele pequeno equipamento em madeira. Ele é uma janela para um futuro onde o controle do patrimônio volta para as mãos de quem sempre deveria tê-lo.
Marcelo Massarani é Professor Doutor da Escola Politécnica da USP, Diretor Acadêmico da Associação Brasileira de Engenharia Automotiva, membro do Conselho Diretor do Instituto da Qualidade Automotiva e Conselheiro empresarial

