Bitcoin: o triunfo tardio do punk contra o sistema

Artigo do Prof. Dr. Marcelo Massarani para a Gazeta Mercantil Digital, veiculado em 30/09/2025

De moeda anarquista a instrumento financeiro global, o Bitcoin pressiona governos e bancos centrais a repensarem seu papel

O movimento punk, surgido nos anos 1970, representou uma contestação radical à ordem estabelecida. Mais do que um estilo musical, foi uma expressão cultural marcada pela rejeição às estruturas sociais e institucionais vistas como opressoras. O lema “no future” sintetizava essa postura de inconformismo. Se o futuro parecia aprisionado por governos, corporações e convenções sociais, caberia criar alternativas à margem do sistema, mesmo que imperfeitas ou improvisadas. O punk não buscava reformar a ordem vigente, mas negá-la de forma contundente.

Quase quatro décadas depois, o espírito contestador ressurgiu de modo inesperado, não mais por meio de guitarras distorcidas ou performances anárquicas, mas em linhas de código. Durante a crise financeira global de 2008, Satoshi Nakamoto, personagem cuja identidade permanece desconhecida, publica o white paper “Bitcoin: A Peer-to-Peer Electronic Cash System”, descrevendo o conceito de uma moeda digital descentralizada baseada em blockchain.

O Bitcoin inaugurou um modelo monetário que prescinde de bancos, governos e intermediários. Trata-se de um sistema descentralizado que oferece ao indivíduo a possibilidade de ser seu próprio custodiante, eliminando a dependência de instituições tradicionais.

Entre o punk dos anos 1970 e o Bitcoin do século XXI estabeleceu-se um elo conceitual por meio do movimento cyberpunk. Desenvolvido nos anos 1980 e 1990, esse imaginário literário, marcado por autores como William Gibson e Bruce Sterling, descrevia futuros distópicos dominados por megacorporações e governos autoritários, em que a resistência era protagonizada por hackers e marginais digitais. A célebre síntese “high tech, low life” refletia o paradoxo de sociedades tecnologicamente avançadas, mas socialmente degradadas. 

Gibson, em Neuromancer, cunhou o termo “ciberespaço” e delineou a atmosfera estética do gênero. Sterling, em Islands in the Net e Mirrorshades, conferiu densidade política e social à narrativa. Essa combinação moldou a percepção de que a tecnologia não deveria ser apenas instrumento de controle, mas também de libertação. Foi nesse contexto que emergiram os cypherpunks, comunidades que defendiam o uso da criptografia como ferramenta política para garantir privacidade e autonomia diante do avanço da vigilância estatal e corporativa. O Bitcoin é herdeiro direto dessa tradição: punk em sua essência disruptiva, cyberpunk em sua estética cultural e cypherpunk em sua implementação prática.

Ao longo de seus dezesseis anos de existência, o Bitcoin passou de experiência marginalizada, associada a nichos de entusiastas, hackers e transações na chamada “deep web”, para a condição de ativo reconhecido globalmente. Hoje, empresas listadas em bolsas norte-americanas, como MicroStrategy e Tesla, incorporaram Bitcoin em seus balanços. Fundos de investimento negociam produtos derivados baseados em criptoativos, e países como El Salvador adotaram-no como moeda legal. A aprovação recente de ETFs de Bitcoin à vista nos Estados Unidos consolidou sua aceitação no mercado regulado, inserindo-o definitivamente no portfólio institucional de investidores tradicionais. Essa trajetória, que vai do estigma de “dinheiro anarquista” à chancela de Wall Street, evidencia a transição de um experimento de resistência para um componente cada vez mais relevante do sistema financeiro internacional.

O sistema vigente, no entanto, resiste a tais mudanças. Bancos centrais estudam a criação de moedas digitais soberanas (CBDCs) como alternativa para preservar o controle monetário. Autoridades regulatórias buscam impor limites e obrigações que reduzam o alcance da descentralização. Setores tradicionais da economia insistem em narrativas que associam as criptomoedas a riscos de fraude, instabilidade e criminalidade. Trata-se de uma reação compreensível, uma vez que a adoção ampla de tecnologias descentralizadas ameaça o papel centralizado que instituições financeiras exercem há séculos e redistribui poder para indivíduos e comunidades conectadas globalmente. A tensão entre inovação e conservação permanece em aberto.

Meu interesse particular neste tema decorre justamente da constatação de que a tecnologia é capaz de reconfigurar estruturas consolidadas, alterando relações de poder e confiança. Assim como no passado a introdução de motores de combustão interna, computadores ou redes de telecomunicações remodelou setores inteiros, o blockchain e as finanças descentralizadas representam hoje uma nova fronteira de transformação. Observar esse processo em tempo real significa testemunhar a realização tardia de um projeto de rebeldia cultural que, iniciado nos palcos do punk e nas páginas do cyberpunk, encontra agora sua materialização no espaço digital e financeiro.

O legado do punk, portanto, não se restringe às memórias musicais ou aos símbolos de rebeldia estética. Ele se perpetua na lógica do código aberto, na transparência dos algoritmos e na construção de redes que não dependem de permissões. A blockchain representa a materialização tardia daquele espírito contestador, ao propor uma alternativa funcional e escalável ao sistema financeiro tradicional. Do “no future” dos punks ao “high tech, low life” dos cyberpunks, consolidou-se uma trajetória que culmina no presente com uma revolução digital em andamento.

Mais do que inovação financeira, o Bitcoin representa um abalo no pacto que por séculos conferiu aos governos o monopólio da moeda. Ao retirar deles a prerrogativa de emitir e controlar valor, ele abre espaço para um sistema descentralizado em que a confiança não depende de instituições, mas de protocolos. O que começou como rebeldia cultural tornou-se um experimento global capaz de redefinir o equilíbrio entre Estado, mercado e indivíduo.

Marcelo Massarani é Professor Doutor da Escola Politécnica da USP, Diretor Acadêmico da Associação Brasileira de Engenharia Automotiva, membro do Conselho Diretor do Instituto da Qualidade Automotiva e Conselheiro empresarial