O Prof. Dr. Marcelo Massarani, traz uma reflexão importante na Gazeta Mercantil Digital (21/10/2015): até que ponto o formato do ENEM passou a interferir na formação científica dos jovens e nas bases da engenharia brasileira?
Uma experiência em sala de aula que revela como o ENEM passou a orientar o ensino médio e a afetar a formação em engenharia
Em uma aula de Mecânica Geral, disciplina do primeiro ano da Escola Politécnica da USP, vivi uma situação que me marcou. Enquanto explicava a decomposição de uma força, percebi que alguns alunos tinham grande dificuldade em acompanhar o raciocínio. Tentei abordar o tema de várias maneiras, usando exemplos geométricos, vetoriais e físicos, até que percebi que a dúvida fundamental não estava na aplicação do conceito, mas em algo muito mais básico. Um dos alunos levantou a mão e perguntou: “Professor, o que é o cosseno?”. Naquele instante compreendi que alguns alunos da turma não sabiam o significado de um conceito elementar da trigonometria. E foi inevitável me perguntar como jovens ingressaram num dos cursos de engenharia mais exigentes do país sem esse conhecimento essencial.
Essa situação, que poderia parecer isolada, reflete um problema estrutural do ensino médio. A fragmentação dos currículos, a descontinuidade entre séries e a falta de formação continuada dos professores enfraquecem o aprendizado. Soma-se a isso a pressão por resultados rápidos, que leva escolas a concentrar esforços apenas no que é cobrado nas avaliações. O que é medido tende a ser priorizado, e o que não é medido perde espaço.
Como o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) se tornou o principal indicador nacional e a principal via de acesso à universidade, acabou definindo o que se ensina. Conteúdos que exigem raciocínio formal e domínio conceitual foram sendo substituídos por abordagens mais interpretativas, e assim o exame, embora tenha cumprido papel importante na democratização do acesso, acabou contribuindo para o enfraquecimento da formação científica dos estudantes.
Criado em 1998, o ENEM nasceu com o propósito de avaliar competências gerais e oferecer um diagnóstico da qualidade da educação básica. Não era uma prova de memorização, mas um instrumento destinado a avaliar se o estudante conseguia aplicar o que aprendeu a situações reais. A partir de 2009, o exame passou a ser usado como principal forma de ingresso no ensino superior, integrando programas como Sisu, ProUni e Fies. Essa mudança ampliou seu alcance, mas também o transformou em eixo de referência para o ensino médio.
Desde então, o conteúdo escolar começou a se moldar ao formato do exame. Em matemática e ciências da natureza, a matriz do ENEM privilegia a interpretação de gráficos e a resolução de problemas contextualizados. Conceitos como trigonometria, álgebra e funções continuam presentes na prova, mas em geral são cobrados de maneira aplicada, vinculados a situações cotidianas e com baixo grau de abstração. O estudante aprende a identificar o seno ou o cosseno de um ângulo para resolver um problema prático, mas raramente compreende a lógica geométrica que sustenta esses conceitos. Essa abordagem favorece o raciocínio funcional, mas deixa lacunas no entendimento formal, que é justamente aquilo que a engenharia exige.
Os efeitos são visíveis nas universidades. Em cursos de engenharia de todo o país, as taxas de reprovação em disciplinas básicas, como cálculo e física, frequentemente ultrapassam metade dos alunos matriculados. Muitos ingressantes precisam refazer disciplinas do primeiro ano, e uma parcela expressiva acaba desistindo. Como professor, testemunhei alunos inteligentes e dedicados perderem a confiança diante das dificuldades. Essa é uma perda silenciosa, mas profunda, que atinge tanto os jovens quanto o potencial de inovação do país.
O problema não está no ENEM em si, mas no efeito que exerce sobre o sistema de ensino. Um exame concebido para avaliar competências acabou se tornando o principal orientador de conteúdo. O ensino médio passou a ser planejado em função da prova, e o que não é cobrado com frequência ou exige maior formalismo acabou perdendo espaço. Assim, a base conceitual das áreas de exatas, que vai muito além da aplicação de fórmulas, foi gradualmente enfraquecida.
É preciso repensar esse modelo. A democratização do acesso à universidade é um avanço que deve ser preservado, mas ela precisa vir acompanhada de instrumentos que assegurem que os estudantes ingressem com a base necessária. Talvez seja o momento de considerar a criação de um Índice de Prontidão em Exatas, que avalie de forma mais precisa o domínio de conteúdos estruturantes sem comprometer seu caráter inclusivo. Tal iniciativa ajudaria a orientar escolas e universidades e fortaleceria a transição entre ensino médio e superior.
Formar engenheiros exige tempo, consistência e um alicerce sólido em matemática e física. O episódio vivido em sala de aula é apenas o retrato de uma falha sistêmica. O Brasil não carece de talento, mas de uma estrutura educacional que permita ao talento florescer. Reconhecer que o modelo atual do ENEM precisa evoluir não significa negar seus méritos, mas aprimorá-lo para que cumpra plenamente sua função: preparar, de fato, as novas gerações para os desafios de um país que deseja se sustentar sobre conhecimento, tecnologia e inovação.
Marcelo Massarani é Professor Doutor da Escola Politécnica da USP, Diretor Acadêmico da Associação Brasileira de Engenharia Automotiva, membro do Conselho Diretor do Instituto da Qualidade Automotiva e Conselheiro empresarial

		