O Brasil que expulsa a sua própria indústria

Artigo do prof. Dr. Marcelo Massarani, publicado na Gazeta Mercantil Digital, em 25/11/2025.

A nova fábrica da Lupo no Paraguai escancara o custo de conviver com um Estado que se expande enquanto a competitividade encolhe.

Voltou a repercutir na imprensa o investimento da Lupo em uma nova fábrica no Paraguai. A CEO da empresa, Liliana Aufiero, neta do fundador, explicou de forma direta o que motivou a decisão. Segundo ela, produzir no Paraguai custa quase 28% menos do que no Brasil. Essa diferença viabiliza o crescimento no próprio mercado brasileiro, além de aumentar a competitividade. Em suas palavras: “não foi a Lupo que decidiu ir para o Paraguai, foi o Brasil que empurrou a empresa para lá”. A afirmação ganha força porque sintetiza a realidade de muitos setores que há anos convivem com o peso crescente de um ambiente em que produzir exige enfrentar obstáculos que nada têm a ver com eficiência ou inovação.

A decisão da Lupo não é um caso isolado. Ela expõe um padrão conhecido sempre que o custo doméstico ultrapassa limites razoáveis e o ambiente regulatório se torna mais difícil de administrar do que a própria produção. Quando esse ponto é atingido, empresas buscam alternativas em países onde as regras são mais leves, os custos mais previsíveis e o risco regulatório menor. Não se trata de abandonar o país de origem, mas de preservar a capacidade de competir.

A comparação entre Brasil e Paraguai torna essa lógica evidente. No Brasil, a carga tributária é alta e a estrutura necessária para cumpri-la é ainda mais onerosa. Empresas sustentam departamentos complexos que lidam diariamente com obrigações acessórias, interpretações conflitantes e mudanças frequentes nas normas fiscais. A legislação trabalhista permanece rígida e cara. A energia tem custo elevado. A infraestrutura logística encarece o transporte e reduz a agilidade. Além disso, a regulação fragmentada entre diferentes níveis de governo cria incertezas que dificultam o planejamento e afetam diretamente a competitividade.

O Paraguai adotou uma estratégia distinta. Simplificou seu sistema tributário, instituiu o regime Maquila com alíquota mínima sobre o valor agregado, manteve energia barata e confiável e estruturou normas claras, enxutas e previsíveis. O ambiente regulatório é mais objetivo e a burocracia menor. Ao criar condições estáveis e pouco conflituosas, o país se tornou naturalmente atraente para indústrias que operam com margens estreitas e dependem de previsibilidade.

Essa diferença conduz ao debate sobre o papel do Estado. Uma indústria sólida depende de um Estado que funcione bem nas áreas essenciais, como segurança jurídica, infraestrutura, educação básica e estabilidade institucional. O problema surge quando o Estado amplia suas funções e aprofunda sua complexidade sem entregar serviços equivalentes. O excesso de estruturas, regras e exigências, muitas vezes criadas com boas intenções, acaba resultando em um ambiente pesado que tributa muito, regula em excesso e devolve menos do que consome.

Há um aspecto estrutural raramente discutido abertamente. Organismos estatais tendem a crescer por inércia. Cada novo programa, departamento ou regulamentação cria necessidades internas de manutenção, justificativas permanentes e uma lógica própria de expansão. Assim, mesmo quando existe clareza sobre as soluções necessárias para aumentar a competitividade do país, como simplificação tributária, racionalização administrativa e maior estabilidade normativa, implementá-las se torna extremamente difícil. O sistema resiste a qualquer tentativa de redução porque cada parte dele se articula para garantir sua sobrevivência.

Esse comportamento institucional gera um paradoxo. O Estado, que deveria ser o motor da competitividade, acaba se tornando uma das maiores fontes de ineficiência. O custo elevado se converte em tributos altos. A dispersão de funções cria normas confusas. A lentidão para decidir alimenta a insegurança jurídica. A falta de foco compromete áreas que realmente importam para a produtividade. Não se trata de defender ausência de Estado, e sim de reconhecer que um aparato pesado compromete a capacidade de produzir, inovar e competir.

O Paraguai avançou justamente nos pontos em que o Brasil ainda se atrapalha. Criou regras mais simples, reduziu custos operacionais e manteve previsibilidade. O país não é mais desenvolvido nem mais sofisticado, mas entendeu que competitividade não se constrói com excesso de regras e custos desnecessários. Enquanto isso, o Brasil tenta mitigar problemas estruturais com incentivos pontuais que aliviam pressões em alguns setores, mas não resolvem a raiz do desequilíbrio.

Por isso, movimentos como o da Lupo tendem a se repetir. Empresas buscam condições que permitam planejar e competir. Quando o ambiente se torna complexo e caro, a produção se desloca. Onde o Estado é leve, o capital encontra caminho. Onde é pesado, ele perde força.

Se o Brasil deseja preservar sua base industrial, precisará retomar o foco no essencial. Simplicidade regulatória, previsibilidade, racionalidade administrativa e responsabilidade sobre os incentivos criados por cada política pública formam a base de um ambiente saudável. As soluções são conhecidas e tecnicamente viáveis, mas exigem uma transformação difícil, porque dependem da capacidade de um sistema amplo e complexo de reduzir a própria dimensão. Esse é o desafio central.

A indústria brasileira não pede privilégios. Pede condições mínimas para produzir com eficiência. Pede coerência entre custo e entrega. Pede um ambiente no qual empreender não seja um exercício de resistência permanente. Quando essas condições existem, a produtividade surge. Quando não existem, as empresas partem. O caso Lupo apenas escancara essa dinâmica.

E, no fundo, sabemos que ainda há caminho para reverter esse quadro. Mas será necessário superar uma característica profundamente enraizada na estrutura estatal brasileira. Há momentos em que sociedades precisam escolher entre conviver indefinidamente com um Estado que se expande sem medida ou iniciar, mesmo que lentamente, o processo de domar essa criatura que cresce por conta própria. A escolha não é simples, mas é inevitável.

Marcelo Massarani é Professor Doutor da Escola Politécnica da USP, Diretor Acadêmico da Associação Brasileira de Engenharia Automotiva, membro do Conselho Diretor do Instituto da Qualidade Automotiva e Conselheiro empresarial