Artigo do prof. Dr. Marcelo Massarani, em sua Coluna na Gazeta Mercantil Digital, em 09/12/2025

Como a consciência sobre o próprio pensamento se torna essencial em um mundo onde a inteligência artificial é acessível a todos

A inteligência artificial (IA) percorreu, em pouco tempo, o caminho que caracteriza toda tecnologia transformadora. Ela nasceu restrita a laboratórios, exigindo grande capacidade computacional, especialistas e investimentos elevados. Em seguida se popularizou e agora alcança sua fase mais impactante, a da comoditização. Hoje qualquer pessoa pode acessar modelos extremamente avançados de IA a partir de um celular. Isso cria um cenário profissional totalmente novo, no qual a tecnologia deixa de ser diferencial e passa a ser componente constante do dia a dia das profissões.

Nesse novo ambiente surgem exigências cognitivas diferentes daquelas às quais estávamos habituados. Entre elas está a metacognição, cujo entendimento se torna essencial para lidar adequadamente com a IA. O termo, introduzido na década de 1970 pelo psicólogo norte-americano John Flavell, descreve a capacidade humana de observar, monitorar e ajustar o próprio processo de pensamento.

Em um contexto em que a IA fornece respostas rápidas e detalhadas, a metacognição ajuda o profissional a distinguir o que exatamente pretende resolver, reconhecer quando formulou bem o problema e avaliar se o raciocínio está de fato conduzindo ao objetivo correto. A tecnologia acelera a execução, mas não substitui a clareza intelectual que deve orientar essa execução.

Quando a IA se torna abundante, as profissões passam por uma transformação silenciosa. O conhecimento técnico, que sempre definiu posições profissionais, permanece importante, porém já não é o núcleo central do diferencial competitivo. Tarefas operacionais e analíticas se tornam acessíveis a todos. Isso faz com que o valor migre para a capacidade de pensar com clareza, identificar premissas, avaliar riscos, interpretar resultados e decidir com discernimento. Profissionais que apenas reagem às respostas da IA se tornam vulneráveis. Profissionais capazes de observar e dirigir o próprio pensamento ampliam seus resultados de forma consistente.

A metacognição atua de maneira direta nesse processo. Ela permite perceber se a formulação do problema está clara, se a pergunta enviada à IA é adequada, se uma resposta aparentemente plausível contém equívocos, se o raciocínio precisa ser revisado ou aprofundado. Ela ajuda a reconhecer limitações, ajustar estratégias e aprender com erros. Quando aplicada ao uso da IA, transforma o profissional em agente ativo que controla o processo cognitivo e não em alguém que apenas aceita a saída fornecida pelo algoritmo. É a diferença entre utilizar a IA como amplificador de raciocínio ou como multiplicador de equívocos.

O desafio contemporâneo é que a metacognição não costuma fazer parte da formação de muitos profissionais. Embora seja uma capacidade humana geral, ela depende de treino consciente. Flavell já enfatizava que a metacognição se fortalece com práticas de reflexão sobre o próprio raciocínio. Entre essas práticas estão revisar mentalmente decisões tomadas, identificar o que exatamente levou a determinada conclusão, explicitar premissas antes de agir, comparar expectativas com resultados e questionar continuamente a coerência interna da própria linha de pensamento. Pessoas que adotam esses hábitos desenvolvem uma consciência mais sólida sobre como pensam, o que melhora diretamente o uso da IA como ferramenta intelectual.

Alguns cursos superiores favorecem naturalmente o desenvolvimento da metacognição porque exigem formulação rigorosa de problemas, pensamento abstrato e revisão constante de processos mentais. A engenharia estimula a decomposição de desafios e o raciocínio estruturado. A matemática fortalece o pensamento lógico e o monitoramento de cada etapa de dedução.

A filosofia desenvolve análise crítica, clareza conceitual e identificação de pressupostos. A psicologia cognitiva e a educação introduzem diretamente conceitos sobre os processos mentais e a autorregulação do pensamento. Ciências da computação e física também criam ambientes de resolução de problemas que incentivam a autoconsciência intelectual. Em todas essas áreas, o aluno aprende a observar seu próprio processo mental para estruturar soluções consistentes.

O profissional que domina a metacognição consegue aproveitar o melhor da IA sem perder autonomia intelectual. Ele avalia a pertinência das respostas, detecta inconsistências, identifica vieses, redireciona perguntas e compreende os limites da ferramenta. Dessa forma, evita erros acelerados pela tecnologia e transforma a IA em aliada estratégica. Sem essa habilidade, o risco é inverter a relação e permitir que a IA conduza o raciocínio humano.

A comoditização da IA recoloca o pensamento humano no centro das profissões. O acesso à tecnologia deixou de ser relevante como diferencial. O que importa agora é a qualidade do processo mental que dirige seu uso. Em um ambiente em que todos podem utilizar modelos avançados, a verdadeira escassez está na capacidade de pensar sobre o próprio pensamento.

A metacognição torna-se a base da atuação profissional na nova era. Ela é a habilidade que permitirá transformar abundância tecnológica em resultados sólidos, seguros e orientados por propósito. O futuro não será definido pela tecnologia disponível, mas pela consciência com que cada profissional decide utilizá-la.

Marcelo Massarani é Professor Doutor da Escola Politécnica da USP, Diretor Acadêmico da Associação Brasileira de Engenharia Automotiva, membro do Conselho Diretor do Instituto da Qualidade Automotiva e Conselheiro empresarial