A indústria automotiva brasileira e os riscos de um futuro incerto
Estreia do Prof. Dr. Marcelo Alves, da Poli-USP, como colunista da Gazeta Mercantil Digital. Seu artigo de abertura, publicado no dia 06 de setembro, analisa os rumos da indústria automotiva brasileira.
A indústria automotiva brasileira, embora significativa no contexto nacional, enfrenta desafios estruturais que a tornam vulnerável em um mercado global cada vez mais competitivo. Comparada a outros países, como os Estados Unidos, a China e Europa, o Brasil lida com limitações impostas por um mercado interno relativamente pequeno e uma economia pouco integrada ao comércio global.
Esses fatores, combinados com a falta de escala e políticas públicas por vezes inconsistentes, colocam em risco a continuidade dos investimentos no setor e, em um cenário extremo, podem levar à redução ou até à eliminação da produção de veículos no país.
Para compreender a vulnerabilidade da indústria automotiva brasileira, é necessário considerar o senso de proporções e o contexto histórico. Em 2013, auge da produção automotiva no Brasil, foram fabricados cerca de 3,7 milhões de veículos.
Esse número, embora expressivo para o contexto nacional, é modesto quando comparado a outras potências, ainda mais quando se considera que atualmente a produção de veículos no Brasil é ainda menor, cerca de 2,5 milhões em 2024 segundo dados da ANFAVEA. Ou seja, mais de 10 anos após o auge da produção, o Brasil ainda não conseguiu retornar aos mesmos volumes de produção.
Num comparativo curioso, nos Estados Unidos, em 1929, a produção já alcançava 5,3 milhões de unidades, um feito notável para a época, considerando a ausência de tecnologias modernas, como computadores, inteligência artificial ou automação. Esse volume reflete cadeias de suprimento já consolidadas, mão de obra qualificada e uma cultura automotiva profundamente enraizada, fatores que o Brasil ainda busca consolidar.
Ainda que se argumente que a comparação do Brasil de 2025 com os Estados Unidos de quase 100 anos atrás possa ter alguma inconsistência, ela ilustra a distância em termos de capacidade de produção e consumo de veículos entre os dois países, ilustrando, ainda que de modo hiperbólico e longe do ufanismo, o fato do mercado e da indústria automotiva no Brasil ainda terem muito a evoluir.
Já na China contemporânea, a comparação pode ser ainda mais impressionante: a produção anual é de cerca de 30 milhões de veículos. Esse volume permite ganhos de escala que tornam os fabricantes chineses altamente competitivos.
No caso brasileiro, o desenvolvimento da indústria está limitado por fatores como: a dependência do mercado doméstico de renda relativamente baixa, ainda que ampliado pelo Mercosul, aliada a barreiras logísticas e econômicas, linha de produtos atrelada a características únicas do mercado local, o que dificulta a exportação de veículos brasileiros, reduzindo a atratividade do país para investimentos de longo prazo.

O caso australiano: um alerta para o Brasil
O encerramento da indústria automotiva na Austrália em 2017 serve como um estudo de caso relevante para o Brasil. Após mais de um século de produção, montadoras como Ford, Holden (GM) e Toyota encerraram suas operações de fabricação no país devido a uma combinação de fatores: altos custos de produção, um dólar australiano valorizado, um mercado interno pequeno e a concorrência global acirrada. A redução de subsídios governamentais também desempenhou um papel crucial, sinalizando a falta de prioridade política para o setor.
Houve consequências. Empregos foram perdidos (cerca de 40.000 – Irving, J., Beer, A., Weller, S. et al. A longitudinal dataset of retrenched automotive workers in Australia. Sci Data 12, 1113 (2025)), impactando diretamente comunidades em regiões como Austrália do Sul e Victoria. Além disso, o país perdeu parte significativa de seu patrimônio industrial. Esse cenário expõe os riscos de depender de um mercado interno limitado sem uma estratégia robusta de competitividade global.
No Brasil, as semelhanças com o caso australiano existem, em que pese o mercado australiano ser, mesmo no seu auge, ainda menor que o Brasileiro (por volta de 1,2 milhão de veículos).
O mercado interno brasileiro ainda é pequeno para sustentar produção em escala comparável às de grandes players globais e com capacidade de recuperar os investimentos necessários para lançamento de novos produtos, com mais tecnologia. A baixa renda da população brasileira é um fator a ser levado em conta.
Apesar do Brasil ter mais de 200 milhões de habitantes, numa estimativa conservadora, para adquirir com financiamento um veículo popular, uma família deveria ter renda de, no mínimo 8 mil reais por mês. Isto significaria um mercado potencial de aproximadamente 40 milhões de pessoas, de acordo com dados do IBGE.
Outros fatores são os altos custos de produção, agravados por uma carga tributária elevada e infraestrutura deficiente, que reduzem a competitividade. Além disso, a instabilidade nas políticas de incentivos fiscais (fim do InovarAuto em 2017 e a transição para o programa Mover, limitado por incentivos considerados insuficientes) e a falta de uma visão estratégica de longo prazo para o setor automotivo criam incertezas para as montadoras.
Todo este cenário forma um quadro de incertezas para o futuro da indústria automotiva no Brasil. A já mencionada combinação de um mercado interno (mesmo atrelado ao Mercosul) insuficiente e de baixa renda para absorver volumes maiores de produção, a relativamente pequena integração com cadeias globais de suprimento e a dependência de políticas públicas voláteis aumentam a vulnerabilidade do setor.
Montadoras globais, em busca de eficiência, tendem a concentrar investimentos em países com maior competitividade, como a China ou México, que exporta 80% de sua produção (ainda que seja muito dependente do mercado dos EUA). Sem uma estratégia mais clara para atrair investimentos e facilitar o comércio exterior, o Brasil corre o risco de ver sua produção automotiva reduzida, com impactos econômicos e sociais significativos.
A perda de empregos diretos e indiretos seria apenas uma das consequências. Assim como na Austrália, o encerramento de fábricas no Brasil afetaria cadeias de suprimento, comunidades locais e a capacidade de inovação tecnológica no setor.
Ainda que possa haver a continuidade de atividades de engenharia – muito significativas e de alto valor – com centros de desenvolvimento de produtos e campos de prova, a saída de montadoras poderia comprometer o desenvolvimento de tecnologias emergentes, como veículos elétricos, e também comprometeria toda a cadeia de empresas fornecedora de peças.
O Brasil precisa aprender com exemplos como o da Austrália, em que pesem todas as diferenças, e buscar estratégias para fortalecer sua indústria automotiva. A Coreia do Sul desenvolveu marcas próprias e, além de ser um produtor significativo (cerca de 4,2 milhões de unidades em 2024, dados da OICA – Organização internacional dos fabricantes de veículos automotores), suas empresas principais têm atuação global. No caso brasileiro, parte da solução incluiria investir em infraestrutura, reduzir custos logísticos e tributários, e promover maior integração com o mercado global.
O crescimento lento da renda populacional no Brasil não permite deixar a cargo do mercado local ser o garantidor da presença de uma indústria automotiva no Brasil. Políticas públicas consistentes, com incentivos bem planejados e focados em inovação e inserção da indústria no mercado global, são essenciais para manter a competitividade do setor. Sem essas medidas, o Brasil corre o risco de ver sua indústria automotiva encolher, comprometendo empregos, desenvolvimento econômico e sua posição no cenário global.
A história mostra que a falta de visão estratégica pode custar caro – e o tempo para agir é agora.
Artigo elaborado pelo Prof. Dr. Marcelo A L Alves – Docente no Departamento de Engenharia Mecânica – Escola Politécnica da USP – Coordenador do Centro de Engenharia Automotiva