Artigo do prof. Dr. Marcelo Massarani na Gazeta Mercantil Digital, publicado em 18/11/2025.
A metodologia que nasceu para reduzir custos e hoje ajuda a repensar produtos, processos e decisões.
Na semana passada participei de um podcast em uma montadora de automóveis para discutir aplicações de Engenharia e Análise do Valor em qualidade. Foi uma conversa produtiva que reforçou algo que sempre me impressionou nesta metodologia. Embora tenha surgido como ferramenta para reduzir custos, substituir materiais e simplificar produtos, ela vai muito além dessas finalidades iniciais. A lógica que sustenta a Engenharia e Análise do Valor é, antes de tudo, uma forma de raciocínio extremamente flexível.
A história começa durante a Segunda Guerra Mundial. A escassez de materiais estratégicos obrigou engenheiros da General Electric a repensar produtos inteiros. A pergunta não era como manter exatamente o mesmo item fabricado antes da guerra. A pergunta era o que realmente aquele item precisava fazer. A resposta a esta pergunta conduzia às funções essenciais. Ao identificá-las, era possível imaginar formas diferentes de cumprir essas funções e criar produtos equivalentes, muitas vezes melhores, usando materiais disponíveis e processos mais simples.
A abordagem funcional permanece até hoje como o coração da metodologia. Toda função é expressa em verbo mais substantivo. Exemplos simples ilustram esse princípio. Uma garrafa de água tem como função principal conter líquido. Uma cadeira tem como função principal acomodar pessoas. Um farol automotivo tem como função principal iluminar a via. Tudo o que existe no item, desde materiais até detalhes construtivos, deveria existir porque contribui para cumprir esta função. O que não contribui é analisado com cuidado, pois pode ser simplificado, substituído ou eliminado.
O ponto central da Engenharia e Análise do Valor é resgatar a necessidade original que deu origem ao produto. Quando uma equipe se lembra da função principal e revisita o problema que o produto deveria resolver, abre-se a porta para algo poderoso. Em vez de apenas aperfeiçoar o que já existe, torna-se possível redesenhar a solução. Surge a chance de criar um produto novo, atualizado tecnologicamente, mais simples e com mais qualidade, porque resolve de maneira mais direta o problema fundamental.
A partir deste ponto, a metodologia revela seu caráter mais versátil. Ao ser aplicada como forma de raciocínio, a Engenharia e Análise do Valor deixa de ser um instrumento restrito ao chão de fábrica e passa a se tornar uma lente para interpretar qualquer situação. A pergunta o que isso precisa fazer transforma reuniões, processos, serviços e até rotinas pessoais. Quando um processo administrativo se arrasta por dias, por exemplo, a análise funcional pode revelar que sua função principal é autorizar decisão. Todo o restante deveria existir apenas para viabilizar esta função. Ao relembrar isso, abrem-se alternativas como automatizar etapas, reorganizar responsabilidades ou simplificar exigências que não agregam clareza nem segurança.
O mesmo acontece no setor de serviços. Em um atendimento ao cliente, a função principal é resolver demanda. O modo como isso é feito pode variar de acordo com tecnologias, escala e perfil do público. Ao observar a função, e não o hábito, surgem alternativas que vão desde reorganizar fluxos até revisar canais de contato. Muitas ineficiências decorrem do apego a formas antigas que já não atendem adequadamente à função.
Situações ainda mais cotidianas também ilustram o poder deste raciocínio. Quando avaliamos uma gaveta cheia de objetos esquecidos, a Engenharia e Análise do Valor pergunta para que este item existe. Muitas coisas permanecem guardadas não por sua função, mas por inércia emocional ou organizacional. O mesmo raciocínio vale para agendas pessoais. Uma reunião recorrente pode ter perdido sua função essencial. Uma rotina matinal pode estar mais complexa do que precisa para cumprir o que deve fazer, como preparar o dia ou organizar prioridades. Ao resgatar a função, abrimos espaço para simplificar sem perder qualidade.
Até decisões profissionais podem se beneficiar dessa lógica. Quando alguém repensa sua carreira, a pergunta funcional pode ser formulada como o que meu trabalho precisa fazer para contribuir com meus objetivos. A partir disso, reavaliar caminhos torna-se mais claro, pois se baseia na essência da necessidade e não apenas nas aparências das oportunidades.
Ao longo dos anos percebi que a força da Engenharia e Análise do Valor está justamente em sua simplicidade disciplinada. Ao separar a essência daquilo que é acessório, ela nos ajuda a enxergar novamente problemas que estavam escondidos sob camadas de hábitos, vícios e tradições. E quando voltamos à função, quase sempre descobrimos que existe uma solução mais elegante esperando para ser encontrada. Quando entendemos a função, descobrimos que inovar não é complicar. É simplificar com precisão.
Marcelo Massarani é Professor Doutor da Escola Politécnica da USP, Diretor Acadêmico da Associação Brasileira de Engenharia Automotiva, membro do Conselho Diretor do Instituto da Qualidade Automotiva e Conselheiro empresarial

