Veículos definidos por software e a nova lógica da indústria automotiva

Artigo do prof. Dr. Marcelo Massarani, publicado na Gazeta Mercantil Digital, em 16/12/2025.

Como arquiteturas digitais estão transformando o projeto, o uso e o valor dos veículos

Durante mais de um século, a indústria automotiva construiu sua identidade a partir de motores, transmissões, processos industriais e ganhos incrementais de eficiência mecânica. Esse conjunto de atributos continua relevante, mas já não explica, sozinho, o valor real de um veículo moderno. Automóveis visualmente semelhantes, com potência e preço próximos, podem hoje oferecer experiências radicalmente diferentes ao longo do tempo. A razão dessa diferença não está no aço nem no motor, mas em arquiteturas digitais, algoritmos e na capacidade de atualizar o veículo depois que ele deixa a concessionária. É nesse ponto de inflexão que os veículos definidos por software passam a ocupar o centro do debate sobre o futuro da mobilidade.

Essa constatação ganhou forma concreta no Encontro com a Imprensa promovido pela Associação Brasileira de Engenharia Automotiva (AEA) no dia 10 de dezembro, quando foram lançados três whitepapers sobre temas estratégicos do setor. Entre eles, o documento dedicado à Software-Defined Vehicles e Conectividade em Sistemas Automotivos Contemporâneos apresenta uma leitura clara e estruturada das transformações em curso. Embora conceitos como direção autônoma e conectividade já façam parte do vocabulário corrente, o estudo deixa evidente que existe um elemento mais profundo sustentando essas evoluções: os veículos definidos por software, conhecidos internacionalmente como Software-Defined Vehicles.

Durante décadas, o automóvel foi concebido como um produto essencialmente mecânico, ao qual sistemas eletrônicos e digitais foram sendo incorporados de forma incremental. As funcionalidades eram, em grande parte, determinadas pela arquitetura física, e qualquer melhoria relevante exigia modificações de hardware. O conceito de veículo definido por software rompe com essa lógica. O whitepaper mostra que o setor caminha para arquiteturas organizadas em camadas, nas quais a estrutura mecânica garante robustez e segurança, enquanto o software passa a definir comportamento, desempenho, conectividade e serviços. Essa separação permite que funções sejam atualizadas ao longo do tempo sem intervenções físicas, por meio de atualizações remotas conhecidas como over-the-air.

Na prática, isso significa que o automóvel deixa de ser um produto fechado no momento da compra e passa a se comportar como uma plataforma digital em evolução contínua. Um veículo pode sair da fábrica com determinados sistemas de assistência ao condutor e, meses depois, receber uma atualização que refine algoritmos de frenagem, melhore a leitura de faixas ou reduza consumo em determinadas condições de uso. O mesmo vale para interfaces, sistemas de navegação, gerenciamento de energia e até calibrações que afetam conforto e dirigibilidade. O carro passa a melhorar com o tempo, algo até recentemente restrito a smartphones e outros dispositivos eletrônicos.

Essa nova lógica altera de forma significativa a percepção de valor do consumidor. Em vez de adquirir um bem essencialmente estático, o comprador passa a investir em uma plataforma que se adapta e se aperfeiçoa ao longo do ciclo de vida. A integração de inteligência artificial com a análise de grandes volumes de dados permite ainda a chamada manutenção preditiva. Sensores e sistemas embarcados monitoram continuamente o funcionamento do veículo, identificam padrões de desgaste e antecipam falhas antes que elas se tornem problemas visíveis. Isso reduz custos, aumenta a confiabilidade e diminui paradas inesperadas, beneficiando tanto usuários individuais quanto frotas.

Do ponto de vista industrial, a transição para veículos definidos por software exige uma profunda reorganização das arquiteturas elétricas e eletrônicas, que funcionam como o sistema nervoso do veículo. Sistemas antes fragmentados em dezenas de módulos independentes passam a ser integrados em plataformas mais centralizadas e padronizadas, capazes de suportar atualizações frequentes e novos serviços digitais. O whitepaper destaca que essa padronização reduz a complexidade do desenvolvimento, acelera ciclos de inovação e diminui custos ao longo da vida útil do produto. Ao mesmo tempo, impõe novos desafios relacionados à validação de software, à governança das atualizações e à cibersegurança, que passa a ser um atributo crítico de qualidade e segurança veicular.

Essa lógica não é inédita em outros setores. Smartphones, televisores inteligentes e consoles de videogame já são concebidos como plataformas cujo valor cresce à medida que o software evolui. No caso do automóvel, porém, as exigências são muito mais rigorosas. Segurança funcional, confiabilidade em condições extremas e conformidade regulatória tornam a transição mais complexa, mas também mais estratégica. Quem dominar essa capacidade de desenvolver, atualizar e proteger sistemas digitais confiáveis tende a liderar a próxima fase da indústria automotiva.

Para o consumidor, os efeitos dessa transformação se tornarão cada vez mais evidentes. Atualizações remotas passarão a fazer parte da rotina de uso. A personalização do veículo se ampliará, com sistemas capazes de aprender preferências do condutor e ajustar comportamentos de forma dinâmica. Ao mesmo tempo, a conectividade crescente reforçará a importância da segurança digital, pois a integridade dos sistemas de software passa a ser tão crítica quanto a dos componentes físicos tradicionais.

À medida que essa transição avança, fica claro que os veículos definidos por software não representam um detalhe tecnológico, mas uma redefinição estrutural do produto automotivo e de sua lógica de evolução. Trata-se de um processo deliberado, resultado de escolhas estratégicas que reposicionam o automóvel dentro do ecossistema digital contemporâneo. A convergência entre inteligência artificial, conectividade e arquiteturas orientadas a software indica que o futuro da mobilidade será construído sobre plataformas capazes de aprender, se adaptar e incorporar melhorias contínuas. 

Nesse novo cenário, a competitividade do setor dependerá cada vez menos de componentes físicos isolados e cada vez mais da capacidade de criar, manter e atualizar sistemas inteligentes que sustentem valor, segurança e inovação ao longo de toda a vida do veículo.

Marcelo Massarani é Professor Doutor da Escola Politécnica da USP, Diretor Acadêmico da Associação Brasileira de Engenharia Automotiva, membro do Conselho Diretor do Instituto da Qualidade Automotiva e Conselheiro consultivo